terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nos últimos dias vou aproveitando as frequentes repetições no canal MOV (exclusivo ZON) para rever episódios soltos de The Wire, aquela que é, para mim, a melhor série de sempre. Sim, de sempre. Mesmo. Desde que os meus pais me deixaram, ainda menino, ver séries televisivas. Desde o Verão Azul. Acima de Sopranos (provavelmente a terceira melhor) e Sete Palmos de Terra (sem dúvida a segunda). Mais intemporal que Twin Peaks (no top 10) ou A Balada de Hill Street (idem).

Tenho consciência que este "top" pode ferir a susceptibilidade de muita gente, mas tenham calma. Nem isto é uma coisa estática, pois há sempre séries de grande qualidade a sair (vide Dexter ou True Blood), como há tops bem piores (colocar um reality show como "Survivor" ao lado dos Sopranos faz-me comichão).
Mas isto vem ao caso para, após rever mais uma das cenas-chave da série, fazer aqui uma pequena homenagem a dois actores que tiveram em The Wire os seus trabalhos de toda uma vida.
Refiro-me em primeiro lugar a Michael K. Williams, que interpreta a minha personagem favorita, Omar Little. Omar é um pequeno gangster que, ao contrário da maioria do espectro social da sua "profissão", consegue sobreviver (quase) até ao fim das 5 temporadas de The Wire. Mas não é um gangster qualquer. É, acima de tudo, humano, e como todos nós tem os seus muitos defeitos, mas também inúmeras virtudes. Williams conseguiu retratá-lo tão bem que o transformou num daqueles "bonecos" que vamos (quem assistiu a The Wire do início ao fim) mantê-lo no nosso imaginário televisivo até morrer. Cinzento e nebuloso como poucos, Omar Little é um assassino que rouba traficantes, qual Robin Hood da urbe, de ar duro, cicatriz na cara, impiedoso, agressivo, sobrevivente no esquema selvagem da "rua" que a cidade de Baltimore apregoa nesta magnífica série (sendo a própria Baltimore também uma "personagem" fascinante, assunto que daria para um ensaio).
Mas Omar é também um homossexual assumido, que pretende vingar a morte do seu amante às mãos de criminosos a quem ele roubou vezes sem fim. É um homem que entende a noção de justiça, e consegue a espaços alinhar com os homens das esquadras de polícia, tal como se alia a quem já o tentou matar. É um estratega. Um jogador de xadrez em forma de rap. Mas não confiem nas minhas palavras. Fixem apenas que Omar é a personagem favorita de... Barack Obama. E se depois de assistirem a qualquer outro trabalho do actor Michael K. Williams não acharem que este Omar lhe deu pano para mangas, aconselho-vos a reverem o vosso barómetro artístico.

O outro senhor aqui homenageado é o actor britânico (leiam outra vez... britânico!) Dominic West. Não só a sua personagem, o detective Jimmy McNulty, goza dos mesmos privilégios de profundidade dramática e "áreas cinzentas" na sua humanidade, como West foi obrigado a assimilar durante 5 anos um sotaque americano do estado de Maryland. Quem vir Dominic West no filme "300", por exemplo, pode atestar bem das suas incríveis capacidades camaleónicas, tal é o contraste.
McNulty é um detective de coração aberto, sempre com um pé no alcoolismo, algo fanfarrão e mulherengo, pronto a ajudar os seus colegas e sempre remando contra tudo e todos no intuito de resolver casos e combater o crime de Baltimore.  O problema é que, no caminho, McNulty é capaz de "atropelar" algumas regras do manual (rígido) de procedimentos policiais, e desta forma deixar furibundos alguns colegas e superiores hierárquicos. E não estamos aqui a falar de polícia corrupto retratado de forma barroca e hiperbolizada à la "The Shield". Nada disso. O que se vê em "The Wire" não podia estar mais próximo da realidade, num retrato em que as suas personagens são más quando devem ser más, mas não se apercebem da sua maldade. Ou pensam que, por exemplo, em Portugal, os corruptos sabem sempre que estão a cometer corrupção? Pensar assim é ser ingénuo. É essa ambiguidade moral que transforma The Wire numa série fabulosa, e que mostra Jimmy Mcnulty como um polícia empenhado e esperto, mas também tóxico, obcecado, facilmente irritável se as coisas não se estiverem a processar à sua medida.
Faço, pois, uma prolongada vénia a estes dois senhores, que em conjunto com um elenco de altíssima qualidade conseguiu mostrar ao mundo o quão miserável e corrupta pode ser a sociedade americana num estado do litoral leste do país, a faixa de terreno dita "civilizada", a apenas 70 Km da capital Washington. "The Wire" é a vida, como ela é. Sem estilismos, metáforas, parábolas, hipérboles ou caricaturas. Aqui um crime não se resolve em duas horas, com um esfregar de um cotonete na boca do suspeito, que revela o seu DNA em minutos. Um caso é um caso é um caso. E dói. No polícia que patrulha a rua, no detective que tenta resolver o puzzle, no cidadão que testemunhou, no traficante que mata e vende droga, no político corrompido, no professor de mãos atadas face a um sistema de ensino cego, surdo e mudo, no jornalista amoral. "The Wire" é o mundo todo em 5 séries que prevalecerão por muitos anos. Amen.

Editado a 9 de Janeiro de 2010

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