quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O gosto e a angústia
O gosto pelo cinema é, como qualquer outro gosto, um processo evolutivo sempre em curso. Como é costume ouvir dizer, aprende-se a gostar, sendo difícil e laborioso ter o paladar cinéfilo aguçado.
O meu gosto difere do do meu amigo pelo caminho que cada um de nós percorreu até chegar ao gosto actual. E é sempre um gosto duvidoso, porque daqui por uns anos, talvez até uns meses, terá evoluido, percorrendo novos terrenos, troçando daquele gosto estranho e ingénuo do passado.
Que lance a primeira pedra quem não tem secretamente um "guilty pleasure", um daqueles gostos que serão agora motivo de chacota, mas que há dez anos era a corrente popular dominante. Mas os "populares" evoluiram, e passaram também eles a ter novos gostos. E porque são "culpados" estes prazeres escondidos? Porque a nossa própria consciência assim nos dita, comandando de forma ditatorial  o gosto do presente, que nunca permitiria a entrada no seu panteão de memórias a uma tão má predilecção.
O gosto e a história estão interligados de uma forma muito forte. Os amigos que conheci moldaram o meu gosto, assim como os filmes que compartilharam. As minhas próprias descobertas também ajudaram, tal como os amigos dos amigos que encontrámos naquele café onde debatemos a pertinência daquele actor à luz daquela fotografia, com aqueles diálogos estranhos e um argumento de bradar aos céus. Todas estas interacções históricas fazem parte do meu gosto. Do gosto de cada um de nós, de quem tem as suas próprias histórias para contar.
Nunca me esquecerei do dia em que entrei no velhinho e agora abandonado cinema de S.Tiago, em Castelo Branco, para assistir à sessão de inauguração da sala, corriam os anos 80 do século passado. Acabava de chegar de férias no Algarve, o cheiro a tílias pairava ainda no ar, anunciando que o Verão ia a meio, e o pequeno centro comercial transbordava de pessoas e frenesim. O filme era um êxito nos Estados Unidos e vinha com selo de qualidade garantida. O cartaz, recordo-me, pregava isso mesmo, "filme de qualidade garantida". Chamava-se Top Gun.
Em 2011, Top Gun é um "guilty pleasure"? Depende. Entramos numa disciplica do gosto muito importante, mas irracional: a melancolia. Os miúdos de hoje rir-se-ão da banda sonora xaroposa dos Berlin, dos discutíveis trapos envergados pelas personagens que se passeiam no filme, da história básica e moralista passada na guerra fria, e de um Tom Cruise musculado e pré-cientologia. Mas para mim este filme é inesquecível. E não são só as sequências de acção com aviões verdadeiros de que nunca me esquecerei, ou aquelas montagens sonoras de cortar a respiração, que na altura deram direito a apresentação visual com espectacularidade na cerimónia dos Oscar. Sobretudo, aquele é o filme que eu vi na minha primeira sessão da sala de cinema que me acompanharia durante toda a minha adolescência. Uma sala cujos cheiros e tactos estão impregnados na minha memória, no meu crescimento como um todo. Uma sala em que até a cadeira onde me sentava era quase sempre a mesma. Depois de Top Gun, seguiram-se sessões semanais ininterruptas durante meses a fio, sempre com o dinheiro contado até à noite da sexta-feira seguinte. Lembro-me que cheguei a entrar em sessões com desconhecidos pela mão, pois a meninos da minha idade não era permitido ver Schwarzenegger eliminar em pedaços um predador alienígena que se dedicava a esfolar as vítimas e coleccionar-lhes as caveiras e espinhas dorsais. Se não fosse acompanhado por um adulto, fosse ele quem fosse, não entrava. À revelia dos meus pais, sem noção do potencial perigo, muitas vezes lá deitei para trás a minha timidez e acerquei-me de perfeitos estranhos para poder ver no ecrã algum sangue, sexo ou simples palavrões.
Estes gostos são geracionais, irracionais, fazem parte da nossa identidade, e assim como os nossos pais não descuram um bom filme de Jean Paul Belmondo dos anos 1960 ou 1970, a nós ninguém nos tira um Spielberg dos anos 1980.
Dizem-nos que devemos começar por ver os clássicos, e seguir por aí adiante até aos nossos dias, numa tentativa de emular a própria evolução do cinema, tornando-a paralela à evolução do nosso gosto. No meu entender, por mais filmes que eu veja na minha vida, esta é uma epopeia infrutífera, porque acredito que cada geração tem os seus clássicos, que serão sempre melhores que os da geração seguinte. Além disso, não sou estudante de cinema ou aspirante a realizador. Sou um simples apreciador de cinema, um cinéfilo "das bases", para lhe dar um epíteto partidarista. Mas sou também um cinéfilo cada vez mais velho e com menos paciência para ver os filmes "dos outros", em especial dos presunçosos que me querem meter pelos olhos dentro os seus clássicos como verdades e dogmas absolutos.
Sou filho de uma determinada geração que já viu efeitos e cores que as anteriores não puderam ver. Ou seja, por mais importante que seja um filme de Orson Welles na história do cinema, a mim ninguém me consegue convencer que os seus filmes são melhores que o meu salteador da arca perdida ou o McFly que viajou até ao passado para remediar o seu futuro.
Mas esta ladainha vem a propósito dessa muita propagada aceitação geral de que para ter o tal bom gosto devemos ser ávidos consumidores, neste caso de cinema, de forma a tornar o nosso gosto mais sensível.
Como pai, tenho medo do que se aproxima. Quero transmitir à minha filha o gosto pelo cinema. Quero que consiga apreciar a trilogia original da Guerra das Estrelas em todo o seu esplendor, mas tenho um dilema: para isso terei de evitar que veja primeiro a trilogia mais recente? É que se tal acontecer, a probabilidade de esse passar a ser o seu standard daquele franchise é mais elevada, relegando para segundo plano aqueles filmes velhos "dos outros", tal como eu fiz com os Orson Welles e os Kurosawas. Não quero com isto que fique implícito que nunca vi esses filmes. Já o fiz. Alguns até repetidamente. Mas aquele Top Gun mudou-me a vida, não os Sete Samurais. 
Como é que vou manter o meu pequeno rebento afastado de todos estes efeitos especiais CGI que inundam o mercado actual? Será que vou conseguir impressioná-la com uma Estrela da Morte que explode em mil pedaços como se fosse um efeito pirotécnico de fogo de artifício, numa época como a que vivemos, onde a explosão é um objecto banal e um pequeno apontamento pictórico de qualquer filme de acção que se preze? Como perpetuar este gosto, que é meu, deixando que o seu gosto (o dela) evolua com base nas premissas do mundo moderno actual? É uma angústia, é o que é...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Black Swan
Classificação: 8 Espigas (em 10)
Positivo - A forma como Darren Aronofski retratou a vertigem da obsessão, o perfeccionismo esquizofrénico, a repressão parental, temas personificados na vitimização de uma (ingénua) bailarina de ballet. Aronofski mostra-nos este mundo artístico, geralmente fechado aos circuitos mais elitistas ou de gosto mais opaco, de uma maneira compreensível ao comum dos mortais. Nem todos conseguiriam fazer tanta gente ir ver um filme com ballet (mesmo que este não seja, afinal, o tema principal); a interpretação magnífica de Natalie Portman, que a transporta para outra dimensão estelar; o ressurgimento de alguns tiques do realizador, que se tinham perdido um pouco em The Wrestler e que são a sua imagem de marca (especialmente no seminal "Pi").
Negativo - As referências base do filme são também a sua limitação artística: "Repulsa", de Polanski ou "A Mosca" de Cronenberg, são clássicos que ganham nesta corrida aos pontos; os efeitos especiais usados na metamorfose em cisne são, por vezes, pouco realistas. Talvez uma solução mais tradicional e subjectiva tivesse bastado.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Unstoppable
Classificação: 5 Espigas (em 10)

Positivo - Um filme de Tony Scott é sempre sinónimo de qualidade de produção. Com este Unstoppable acontece o mesmo. É cinema de acção com o neurónio desligado.
Negativo -Embora baseado muito livremente em factos reais, o filme desmorona-se num conjunto de clichés e dramatizações que não acrescentam qualquer emoção; Chris Pine e Denzel Washington em piloto automático (tal como eu, a escrever estas notas para um filme tão imerecido) e sem nada a acrescentar ao seu curriculum, a não ser uns quantos milhares de dólares; O abuso nos travellings e nos filtros sobrecarregados começam a fazer lembrar o infame Michael Bay. Deus nos livre!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Four Lions
Classificação: 8 Espigas (em 10)

Positivo -Sátira inteligente à ideologia (ou falta dela) do terrorismo islamita; humor negro com momentos de antologia (a explosão do corvo é uma delas); a forma como, numa comédia, se espremem os fundamentos do recrutamento de extremistas islâmicos: o medo e a ignorância; as interpretações de Riz Ahmed e Nigel Lindsay.
Negativo - Numa temática tão sensível, é fácil resvalar para o mau gosto. Mesmo que não seja o caso, nota-se em determinados momentos uma certa ingenuidade de conceitos, e um estereótipo que podia ter sido evitado; há momentos demasiado nonsense que se calhar não se enquadram tão bem com a restante subtileza do filme. No fundo, um filme que satiriza o extremismo não se deve... extremar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Enter The Void
Classificação: 8 Espigas (em 10)

Positivo -O genérico, a plasticidade dos cenários (os néons de Tóquio e outras paisagens artificiais), os visuais, os travellings aéreos, tudo elementos que fazem de "Enter The Void" mais que um filme, uma obra de arte visual moderna, delirante e psicadélica; o impacto com que somos transportados para os momentos chocantes do filme; a sexualidade de Paz de La Huerta; o sexo como ciclo natural de vida e morte; comparado com este filme, até "Irreversible" (o outro filme choque de Gaspar Noé) acaba por parecer normal; o clímax final.
Negativo - A montagem desastrosa; com menos meia-hora de minimalismos, este filme seria uma obra-prima.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

 Mesrine - L'instinct de Mort / Mesrine - L'énnemi Public nº1
Classificação: 6 / 7 Espigas (em 10) respectivamente

Positivo - A história de um dos mais procurados meliantes da história criminal francesa é sempre motivo de curiosidade (um "Bonnie and Clyde" à moda europeia); a viagem aos anos 60 e 70 está muito bem feita, com boa escolha de cenários e um notável grande investimento no parque automóvel; Vincent Cassel em grande forma (como actor, porque no peso físico teve de ganhar 20 quilos para representar Mesrine nos seus últimos anos de vida).
Negativo - Os arcos narrativos são pouco explorados e não contêm  número suficiente de elos de ligação para prender o espectador (o que aconteceu com a sua primeira mulher? Fugiu? Para onde? Porque Mesrine não foi atrás?). Talvez tivesse sido mais eficiente concentrar a história em alguns (poucos) pontos chave da vida de Mesrine e não queimar tanta fita num enredo com tantos fait divers, que impressionam, certamente, mas que em excesso baralham as cartas. Este aspecto sente-se menos no segundo filme, onde a acção concentra-se mais nas fugas de Mesrine nos seus tempos de inimigo público nº1 em França, e no seu assassinato.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

The American
Classificação: 7 Espigas (em 10)
Positivo - Um filme bucólico, onde a personagem mais interessante é mesmo a Itália campestre; as conversas entre a personagem de Clooney e o padre da aldeia (Paolo Bonacelli), o mais interessante de todo o argumento (e que podia ter sido melhor explorado); a cena inicial na Suécia, muito promissora e bem filmada.
Negativo -É mais um filme sobre a romantização do ofício de assasssino a soldo, com pouca originalidade; final demasiado previsível e insatisfatório; George Clooney em modo automático, sem grandes desafios.
The Social Network
Classificação: 8 Espigas (em 10)
Positivo - Um filme de David Fincher é sempre um acontecimento. Basta a qualidade técnica. Fotografia crua, orgânica e em tons negros, e uma forma de filmar que demonstra que Fincher é mesmo um dos melhores do mundo no seu ofício; os diálogos de Aaron Sorkin, como seria de esperar; o estudo sobre o impacto social das redes na internet e a solidão que as acompanha, paradoxal ao número gigantesco de "amigos" no Facebook; a interpretação de Jesse Eisenberg.
Negativo - Conforme tive oportunidade de ler em diversos artigos, o filme não só não tem o selo de aprovação de Zuckerberg, como existe de facto uma dramatização e especulação exagerada na história, o que pode levar muita gente a pensar que aquilo se passou mesmo assim, o que é em grande parte incorrecto; o enredo é bom, mas não é do outro mundo, revelando alguma superficialidade nos temas, nas personagens, e na moral e mensagem da história.