O gosto pelo cinema é, como qualquer outro gosto, um processo evolutivo sempre em curso. Como é costume ouvir dizer, aprende-se a gostar, sendo difícil e laborioso ter o paladar cinéfilo aguçado.
O meu gosto difere do do meu amigo pelo caminho que cada um de nós percorreu até chegar ao gosto actual. E é sempre um gosto duvidoso, porque daqui por uns anos, talvez até uns meses, terá evoluido, percorrendo novos terrenos, troçando daquele gosto estranho e ingénuo do passado.
Que lance a primeira pedra quem não tem secretamente um "guilty pleasure", um daqueles gostos que serão agora motivo de chacota, mas que há dez anos era a corrente popular dominante. Mas os "populares" evoluiram, e passaram também eles a ter novos gostos. E porque são "culpados" estes prazeres escondidos? Porque a nossa própria consciência assim nos dita, comandando de forma ditatorial o gosto do presente, que nunca permitiria a entrada no seu panteão de memórias a uma tão má predilecção.
O gosto e a história estão interligados de uma forma muito forte. Os amigos que conheci moldaram o meu gosto, assim como os filmes que compartilharam. As minhas próprias descobertas também ajudaram, tal como os amigos dos amigos que encontrámos naquele café onde debatemos a pertinência daquele actor à luz daquela fotografia, com aqueles diálogos estranhos e um argumento de bradar aos céus. Todas estas interacções históricas fazem parte do meu gosto. Do gosto de cada um de nós, de quem tem as suas próprias histórias para contar.
Nunca me esquecerei do dia em que entrei no velhinho e agora abandonado cinema de S.Tiago, em Castelo Branco, para assistir à sessão de inauguração da sala, corriam os anos 80 do século passado. Acabava de chegar de férias no Algarve, o cheiro a tílias pairava ainda no ar, anunciando que o Verão ia a meio, e o pequeno centro comercial transbordava de pessoas e frenesim. O filme era um êxito nos Estados Unidos e vinha com selo de qualidade garantida. O cartaz, recordo-me, pregava isso mesmo, "filme de qualidade garantida". Chamava-se Top Gun.
Em 2011, Top Gun é um "guilty pleasure"? Depende. Entramos numa disciplica do gosto muito importante, mas irracional: a melancolia. Os miúdos de hoje rir-se-ão da banda sonora xaroposa dos Berlin, dos discutíveis trapos envergados pelas personagens que se passeiam no filme, da história básica e moralista passada na guerra fria, e de um Tom Cruise musculado e pré-cientologia. Mas para mim este filme é inesquecível. E não são só as sequências de acção com aviões verdadeiros de que nunca me esquecerei, ou aquelas montagens sonoras de cortar a respiração, que na altura deram direito a apresentação visual com espectacularidade na cerimónia dos Oscar. Sobretudo, aquele é o filme que eu vi na minha primeira sessão da sala de cinema que me acompanharia durante toda a minha adolescência. Uma sala cujos cheiros e tactos estão impregnados na minha memória, no meu crescimento como um todo. Uma sala em que até a cadeira onde me sentava era quase sempre a mesma. Depois de Top Gun, seguiram-se sessões semanais ininterruptas durante meses a fio, sempre com o dinheiro contado até à noite da sexta-feira seguinte. Lembro-me que cheguei a entrar em sessões com desconhecidos pela mão, pois a meninos da minha idade não era permitido ver Schwarzenegger eliminar em pedaços um predador alienígena que se dedicava a esfolar as vítimas e coleccionar-lhes as caveiras e espinhas dorsais. Se não fosse acompanhado por um adulto, fosse ele quem fosse, não entrava. À revelia dos meus pais, sem noção do potencial perigo, muitas vezes lá deitei para trás a minha timidez e acerquei-me de perfeitos estranhos para poder ver no ecrã algum sangue, sexo ou simples palavrões.
Estes gostos são geracionais, irracionais, fazem parte da nossa identidade, e assim como os nossos pais não descuram um bom filme de Jean Paul Belmondo dos anos 1960 ou 1970, a nós ninguém nos tira um Spielberg dos anos 1980.
Dizem-nos que devemos começar por ver os clássicos, e seguir por aí adiante até aos nossos dias, numa tentativa de emular a própria evolução do cinema, tornando-a paralela à evolução do nosso gosto. No meu entender, por mais filmes que eu veja na minha vida, esta é uma epopeia infrutífera, porque acredito que cada geração tem os seus clássicos, que serão sempre melhores que os da geração seguinte. Além disso, não sou estudante de cinema ou aspirante a realizador. Sou um simples apreciador de cinema, um cinéfilo "das bases", para lhe dar um epíteto partidarista. Mas sou também um cinéfilo cada vez mais velho e com menos paciência para ver os filmes "dos outros", em especial dos presunçosos que me querem meter pelos olhos dentro os seus clássicos como verdades e dogmas absolutos.
Sou filho de uma determinada geração que já viu efeitos e cores que as anteriores não puderam ver. Ou seja, por mais importante que seja um filme de Orson Welles na história do cinema, a mim ninguém me consegue convencer que os seus filmes são melhores que o meu salteador da arca perdida ou o McFly que viajou até ao passado para remediar o seu futuro.
Mas esta ladainha vem a propósito dessa muita propagada aceitação geral de que para ter o tal bom gosto devemos ser ávidos consumidores, neste caso de cinema, de forma a tornar o nosso gosto mais sensível.
Como pai, tenho medo do que se aproxima. Quero transmitir à minha filha o gosto pelo cinema. Quero que consiga apreciar a trilogia original da Guerra das Estrelas em todo o seu esplendor, mas tenho um dilema: para isso terei de evitar que veja primeiro a trilogia mais recente? É que se tal acontecer, a probabilidade de esse passar a ser o seu standard daquele franchise é mais elevada, relegando para segundo plano aqueles filmes velhos "dos outros", tal como eu fiz com os Orson Welles e os Kurosawas. Não quero com isto que fique implícito que nunca vi esses filmes. Já o fiz. Alguns até repetidamente. Mas aquele Top Gun mudou-me a vida, não os Sete Samurais.
O meu gosto difere do do meu amigo pelo caminho que cada um de nós percorreu até chegar ao gosto actual. E é sempre um gosto duvidoso, porque daqui por uns anos, talvez até uns meses, terá evoluido, percorrendo novos terrenos, troçando daquele gosto estranho e ingénuo do passado.
Que lance a primeira pedra quem não tem secretamente um "guilty pleasure", um daqueles gostos que serão agora motivo de chacota, mas que há dez anos era a corrente popular dominante. Mas os "populares" evoluiram, e passaram também eles a ter novos gostos. E porque são "culpados" estes prazeres escondidos? Porque a nossa própria consciência assim nos dita, comandando de forma ditatorial o gosto do presente, que nunca permitiria a entrada no seu panteão de memórias a uma tão má predilecção.
O gosto e a história estão interligados de uma forma muito forte. Os amigos que conheci moldaram o meu gosto, assim como os filmes que compartilharam. As minhas próprias descobertas também ajudaram, tal como os amigos dos amigos que encontrámos naquele café onde debatemos a pertinência daquele actor à luz daquela fotografia, com aqueles diálogos estranhos e um argumento de bradar aos céus. Todas estas interacções históricas fazem parte do meu gosto. Do gosto de cada um de nós, de quem tem as suas próprias histórias para contar.
Nunca me esquecerei do dia em que entrei no velhinho e agora abandonado cinema de S.Tiago, em Castelo Branco, para assistir à sessão de inauguração da sala, corriam os anos 80 do século passado. Acabava de chegar de férias no Algarve, o cheiro a tílias pairava ainda no ar, anunciando que o Verão ia a meio, e o pequeno centro comercial transbordava de pessoas e frenesim. O filme era um êxito nos Estados Unidos e vinha com selo de qualidade garantida. O cartaz, recordo-me, pregava isso mesmo, "filme de qualidade garantida". Chamava-se Top Gun.
Em 2011, Top Gun é um "guilty pleasure"? Depende. Entramos numa disciplica do gosto muito importante, mas irracional: a melancolia. Os miúdos de hoje rir-se-ão da banda sonora xaroposa dos Berlin, dos discutíveis trapos envergados pelas personagens que se passeiam no filme, da história básica e moralista passada na guerra fria, e de um Tom Cruise musculado e pré-cientologia. Mas para mim este filme é inesquecível. E não são só as sequências de acção com aviões verdadeiros de que nunca me esquecerei, ou aquelas montagens sonoras de cortar a respiração, que na altura deram direito a apresentação visual com espectacularidade na cerimónia dos Oscar. Sobretudo, aquele é o filme que eu vi na minha primeira sessão da sala de cinema que me acompanharia durante toda a minha adolescência. Uma sala cujos cheiros e tactos estão impregnados na minha memória, no meu crescimento como um todo. Uma sala em que até a cadeira onde me sentava era quase sempre a mesma. Depois de Top Gun, seguiram-se sessões semanais ininterruptas durante meses a fio, sempre com o dinheiro contado até à noite da sexta-feira seguinte. Lembro-me que cheguei a entrar em sessões com desconhecidos pela mão, pois a meninos da minha idade não era permitido ver Schwarzenegger eliminar em pedaços um predador alienígena que se dedicava a esfolar as vítimas e coleccionar-lhes as caveiras e espinhas dorsais. Se não fosse acompanhado por um adulto, fosse ele quem fosse, não entrava. À revelia dos meus pais, sem noção do potencial perigo, muitas vezes lá deitei para trás a minha timidez e acerquei-me de perfeitos estranhos para poder ver no ecrã algum sangue, sexo ou simples palavrões.
Estes gostos são geracionais, irracionais, fazem parte da nossa identidade, e assim como os nossos pais não descuram um bom filme de Jean Paul Belmondo dos anos 1960 ou 1970, a nós ninguém nos tira um Spielberg dos anos 1980.
Dizem-nos que devemos começar por ver os clássicos, e seguir por aí adiante até aos nossos dias, numa tentativa de emular a própria evolução do cinema, tornando-a paralela à evolução do nosso gosto. No meu entender, por mais filmes que eu veja na minha vida, esta é uma epopeia infrutífera, porque acredito que cada geração tem os seus clássicos, que serão sempre melhores que os da geração seguinte. Além disso, não sou estudante de cinema ou aspirante a realizador. Sou um simples apreciador de cinema, um cinéfilo "das bases", para lhe dar um epíteto partidarista. Mas sou também um cinéfilo cada vez mais velho e com menos paciência para ver os filmes "dos outros", em especial dos presunçosos que me querem meter pelos olhos dentro os seus clássicos como verdades e dogmas absolutos.
Sou filho de uma determinada geração que já viu efeitos e cores que as anteriores não puderam ver. Ou seja, por mais importante que seja um filme de Orson Welles na história do cinema, a mim ninguém me consegue convencer que os seus filmes são melhores que o meu salteador da arca perdida ou o McFly que viajou até ao passado para remediar o seu futuro.
Mas esta ladainha vem a propósito dessa muita propagada aceitação geral de que para ter o tal bom gosto devemos ser ávidos consumidores, neste caso de cinema, de forma a tornar o nosso gosto mais sensível.
Como pai, tenho medo do que se aproxima. Quero transmitir à minha filha o gosto pelo cinema. Quero que consiga apreciar a trilogia original da Guerra das Estrelas em todo o seu esplendor, mas tenho um dilema: para isso terei de evitar que veja primeiro a trilogia mais recente? É que se tal acontecer, a probabilidade de esse passar a ser o seu standard daquele franchise é mais elevada, relegando para segundo plano aqueles filmes velhos "dos outros", tal como eu fiz com os Orson Welles e os Kurosawas. Não quero com isto que fique implícito que nunca vi esses filmes. Já o fiz. Alguns até repetidamente. Mas aquele Top Gun mudou-me a vida, não os Sete Samurais.
Como é que vou manter o meu pequeno rebento afastado de todos estes efeitos especiais CGI que inundam o mercado actual? Será que vou conseguir impressioná-la com uma Estrela da Morte que explode em mil pedaços como se fosse um efeito pirotécnico de fogo de artifício, numa época como a que vivemos, onde a explosão é um objecto banal e um pequeno apontamento pictórico de qualquer filme de acção que se preze? Como perpetuar este gosto, que é meu, deixando que o seu gosto (o dela) evolua com base nas premissas do mundo moderno actual? É uma angústia, é o que é...